Imagem da cantora Billie Eilish desenhada com emojis se torna NFT

Breves considerações acerca dos NFTs e a proteção dos Direitos Autorais no meio digital

A arte nem sempre é algo lucrativo. Na verdade, mesmo alguns artistas hoje considerados fundamentais pra a evolução de seus respectivos campos como Mozart e Van Gogh terminaram seus dias em situação financeira deplorável, incompatível com a grandeza de suas obras.

Não por menos, o patronato se mostrou prática recorrente na história humana. Essa prática pode obedecer diferentes procedimentos mas, em essência, consiste no auxílio social e/ou financeiro de determinado indivíduo ou organização a artista ou intelectual acerca dos quais houvesse interesse sobre seus serviços. Tal benefício poderia vir de um legítimo interesse artístico acerca das produções daquele indivíduo ou ter como fundamento a utilização das mesmas para promover determinada ideologia, grupo social ou servir como propaganda de Estado. Quanto a este último cenário vide as reproduções de Tiradentes por Pedro Américo, antigo pintor da corte imperial, por patrocínio do Barão de Rio Branco (1), na época diplomata na recém-proclamada republica.

A ideia de patronato é frequentemente associada aos Mecenas do Renascimento, burgueses e comerciantes que financiavam artistas e comissionavam quadros, esculturas e construções permitindo um ciclo inovatório frequentemente apontado como um dos mais importantes na história da arte. O próprio termo Mecenas deriva de Caio Mecenas, conselheiro do imperador romano Augusto, quem patrocinou os maiores nomes da poesia da época, Horácio e Virgílio. Em suma, ao longo da história, o artista auto sustentável foi exceção, não regra.

Com a revolução industrial e a maior aquisição de capital pela população geral, porém, os artistas libertaram-se parcialmente dessas amarras, tornando-se capazes de exercer seu trabalho de forma mais autoral e flexível, uma vez que a democratização do acesso às artes criou maior demanda e, em consequência, abriu o mercado para uma maior quantia de profissionais.

Atualmente, o consumo de arte é maior do que nunca. A arte está em cada minuto do dia. No logo de escritórios, na capa dum livro, na música de uma propaganda, no corte de uma camisa. Com a revolução digital há terreno extremamente frutífero para a criação de novos materiais. Referências estão a um clique de distância. A limitação física não mais se aplica para a comissão, compra e venda de obras. O consumidor, por sua vez, dispõe de um sem número de artistas dos mais variados estilos e vertentes para que consolidem sua visão.

Por outro lado, se há abundância de oferta há escassez de escassez. Num espaço em que praticamente toda a arte pode se resumir a um link ou um .zip não há mais a figura do colecionador de arte tradicional, com salas de quadros e tapeçarias.

Inesperadamente, porém, contou 2021 com uma nova tecnologia capaz de recriar a figura do colecionador, ainda que de forma inusitada. Os NFTs, ou “Non Fungible Tokens” são, em essência uma unidade de criptomoeda que possuí atrelada a si um “número de série” a qual é vinculada a determinada obra, conferindo-lhe suposta individualidade e servindo, aos olhos de seus entusiastas, como um certificado de autenticidade digital.

É aqui que a coisa começa a se tornar um pouco estranha mesmo para quem cresceu no meio digital. Abaixo, um print de um leilão dum quadro da cantora americana Billie Elish feito à base de emojis de celular. Quem arrebatou o último lance, o qual figurou em 18 mil dólares, tem agora a propriedade do token que representa a exata mesma imagem que qualquer leitor deste texto vê. Não há uma obra física aguardando o vencedor como seria no leilão de uma estátua, tampouco um bônus exclusivo a ser acessado após a aquisição. Tampouco, também, encontra o vencedor uma maior resolução no arquivo. A imagem, com ou sem o NFT, é idêntica, mas o NFT cria sobre ela um valor de individualidade artificial. (2)

Disponível em: https://foundation.app/yungjake/billie-11098

Outra característica marcante é que a arte a qual mencionamos não necessariamente faz menção aos modelos tradicionais e por vezes pode se dar na forma de um tweet, como é o caso do primeiro tweet escrito, o qual foi realizado pelo próprio CEO da empresa e por ele vendido na importância de 2,4 milhões de dólares. Até mesmo o “gif” de um meme popular, como é o caso do Nyan Cat, pode ser vendido por aproximadamente meio milhão de dólares (3). Em essência, grande parte daquilo que pode ser convertido como arquivo digital poderá ser também negociado desta forma sob a qualidade de arte.

E aqui, ao discutirmos superficialmente o tópico, já se faz essencial uma importante distinção: a propriedade de um NFT atrelado a uma obra não torna alguém dono da obra em si, e sim do Token individual a ela atrelado. Todavia, paradoxalmente, o Token tem valor equivalente àquilo anexo a ele. Para todos os efeitos, colocar um NFT num Rembrandt não te dá a propriedade do quadro, mas sim daquele código único gerado pela ocasião.

Apesar disso, em essência, o código será sempre comercializado de forma anexa à reprodução daquela obra, mesmo que não a “original”. Assim o é porque o termo “Non Fungible” deriva do fato de que, uma vez atrelado a determinado item jamais poderá ser separado. Se alguém copiasse este texto, por exemplo, e anexasse um NFT esse ato ainda seria regido pela lei de direitos autorais uma vez que a mídia seria sempre bem acessório do negócio jurídico do NFT.

Isso não impede, por óbvio, que um NFT seja objeto de negociações dele próprio entre colecionadores, tal qual se poderia realizar com uma partitura de Milton Nascimento ou qualquer outro item colecionável. Todavia, é sempre o Token bem principal daquele negócio jurídico enquanto qualquer coisa a ele anexa secundária e, portanto, acessória.

Dito isso, não é complicado chegar à conclusão que as obras comercializadas dessa forma, ainda que em tese figurem como bem acessórios na venda, não se eximem de obedecer às diretrizes presentes na Lei de Direitos Autorais.

Sabe-se, por exemplo, que mesmo não sendo expressamente protegidos em Lei, prints, gifs e toda sorte de criações midiáticas digitais estão sob o guarda-chuva do Art. da Lei de Direitos Autorais, mesmo aqueles que ainda seriam inventados à época de sua redação.

Portanto, ainda que as obras sejam comercializadas por seus respectivos autores ou pessoas autorizadas para tanto, um Token poderá ser tão somente atrelado aos direitos disponíveis do autor, quais sejam, aqueles de natureza patrimonial, que envolvam a reprodução de seu trabalho, além dos demais elencados no Art. 29 da mesma lei.

Além disso, qualquer negociação que entre no escopo do direitos morais do artista, aqueles que envolvem, dentre outros elementos, a autoria da obra, assegurar a integridade da obra, modificá-la, ou retirá-la de circulação nas hipóteses previstas em lei e os demais listados no Art. 24 da Lei, será, por essência, viciada e, portanto, ilícita.

Outro aspecto relevante deste fenômeno é que, nas últimas semanas, constatou-se um aumento exponencial de bots de Twitter que, se marcados abaixo duma imagem, ou mesmo dum tweet de puro texto, juntos do código de uma carteira digital, criam e atrelam automaticamente um NFT ao tweet em questão, permitindo-o ser revendido por terceiros totalmente alheios à sua criação. (4)

Esse cenário, além de ilícito, suscita problema ainda mais severo. Isso porque uma unidade de criptomoeda não pode ser destruída, tampouco pode um NFT ser desatrelado de determinada obra, uma vez que, pela própria natureza, ele é não fungível. Em verdade, pela própria estrutura da blockchain, é impossível reverter esse tipo de cenário, uma vez que cada um de seus “blocos” necessitam coexistir para o funcionamento do sistema, dentro de sua lógica.

Ainda que possa-se rastrear a propriedade de determinado blockchain, garantindo a eventuais compradores a certeza de sua autenticidade, isso ainda dependerá dos costumes e boa-fé do comprador e não cria um ecossistema capaz de evitar ou reverter o esse tipo de fraude. Uma solução temporária, encontrada por alguns sites de galerias, é desvincular o NFT em questão de seus items. Enquanto essa medida não reverte a violação em si, ao menos retira grande parte do valor econômico daquele token, pois este perde seu valor colecionável.

Por fim, ainda que esta tecnologia seja algo muito novo e ofereça uma grande oportunidade para muitos artistas, neste primeiro momento faz-se plausível que sem equivalente intervenção judicial ou legislativa, acompanhada de uma evolução tecnológica das criptomoedas utilizadas como tokens, eventuais ilícitos promovidos através de NFTs não encontram espaço para sua reversão. De tal sorte, sejam os tokens uma febre temporária ou um novo modelo definitivo de comercialização de arte, é essencial que este fenômeno seja acompanhado de perto por artistas e juristas.

Também publiquei este artigo no Jusbrasil.

Referências:

1) SARZI-RIBEIRO, Regilene Aparecida, A figura humana fragmentada na pintura Tiradentes esquartejado em Pedro Américo e Adriana Varejão, pag. 107

Disponível em: https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/87008/sarziribeiro_ra_me_ia.pdf?sequence=1&i… Acessado em: 12/04/2021

2) MARKS, Will, ZITTRAIN, Jonathan, What Critics Don’t Understand About NFTs. Disponível em: https://amp-theatlantic-com.cdn.ampproject.org/c/s/amp.theatlantic.com/amp/article/618525/ Acessado em: 12/04/2021

3) KASTRENAKES, Jacob, Nyan Cat is being sold as a one-ofakind piece of crypto art. Disponível em: https://www.theverge.com/2021/2/18/22287956/nyan-cat-crypto-art-foundation-nft-sale-chris-torres Acessado em: 12/04/2021

4) PURTILL, James, Artists report discovering their work is being stolen and sold as NFTs. Disponível em: https://www.abc.net.au/news/science/2021-03-16/nfts-artists-report-their-work-is-being-stolen-and-sold/13249408 Acessado em: 12/04/2021


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